domingo, 13 de fevereiro de 2011

Enchentes.

O texto que vem a seguir é de uma jornalista portuguesa que está morando no Brasil a poucos meses, nos encontramos em um colóquio, aqui na cidade do Porto. "Colóquio Odisseia". Um projeto que visava  envolver a comunidade teatral da região Norte de Portugal, dos criadores aos públicos, dos programadores aos mediadores, num processo de interrogação e qualificação das suas experiências, à descoberta dos mecanismos reais de diálogo entre a criação artística teatral e os processos políticos e sociais que determinam a contemporaneidade.


O paraíso não é aqui

Por Alexandra Lucas Coelho
1. — Você tem uma visão muito idílica do Brasil — diz-me a oradora alemã.
Estamos a sair da primeira sessão de um colóquio organizado pelo Teatro Nacional São João. Ela abriu, eu fechei, ela vem de Paris, eu venho do Rio de Janeiro.
Aterrei ao amanhecer. Fui da Portela para Santa Apolónia e de Campanhã para a Rua do Rosário. Oito mil quilómetros de distância e outra estação do ano, mas não só.

2. Gosto tanto do Porto que já vivi a ilusão de viver no Porto por um mês. No avião vi um episódio de “A Cook’s Tour” em que Anthony Bourdain vai ao Porto comer polvo e tripas e depois acorda no cimo de uma colina, algures no Douro, rodeado de vinhas e de Inverno. Gosto tanto do Douro que vivo na ilusão de que um dia vou viver o resto da vida no Douro.
Nessa manhã, no Porto, o Douro estava dourado. Mas passava-se algo, além das tantas casas devolutas: lojas fechadas, restaurantes fechados. Seria mesmo quinta-feira?
Pus as malas no hotel e andei de Cedofeita aos Clérigos. Caminho pedonal, de comércio, de gente, e quase não havia gente, quase não havia comércio. Parecia que algo correra de boca em boca, levando os homens a hibernar. Mais lojas fechadas que abertas, e as abertas, vazias, com promoções de 60 por cento.
— Desculpe, hoje é feriado? — perguntei absurdamente a uma lojista.
Ela olhou-me como se eu chegasse de outro mundo, e de facto. Não eram só oito mil quilómetros nem outra estação do ano.
Mais adiante alguém explicou:
— É a crise, menina.

3. Ao voltar ao hotel escrevi o que diria na manhã seguinte no colóquio. Trouxera livros: Darcy Ribeiro, Sérgio Buarque de Hollanda, Stefan Zweig, esse judeu que em plena ascensão do nazismo teve uma epifania ao viajar pelo Brasil. Foi ele quem proclamou aquela maldita bendição: país do futuro.
Sempre que o futuro parecia vir, não vinha. Os brasileiros pagaram caro tornarem-se um só povo num imenso território com fronteiras estáveis. Pagaram com a vida, descendo da morte nos sertões para a morte nas favelas. Qualquer desejo era contra as evidências em contrário, comida, terra, liberdade ou música, e desse desejo se alimentou o Brasil.

4. Quando a soma de tanto desejo encontra o seu momento tudo parece começar. Viver o Brasil agora é uma experiência de exposição a essa energia, que trespassa o corpo como trespassa a língua.
Sendo eu portuguesa, há nisto um sentido político construído pelo passado. Mas o futuro do nosso passado é sempre feito a partir deste exacto momento, e se isso é válido para o passado individual também será válido para o passado comum.
A identidade não se perde, está em movimento. Ser lisboeta-português-europeu será uma carga fixa, que cada um funde com outras como pode ou quer.
Muito mais que o sentido político passado — gerador de toda uma bibliografia colonialista, pós-colonialista e pós-pós-colonialista — interessa-me o sentido político futuro, por exemplo a forma como o brasileiro absorveu o estranho, o estrangeiro, o bárbaro. A sabedoria que fez o brasileiro ficar soberano.
O medo é uma perda de soberania. Quanto mais medo a Europa tiver, menos será soberana.

5. Mal acabei de falar no Porto, um emérito professor da Sorbonne protestou: a energia do Brasil e o cansaço da Europa eram lugares comuns; ao chamar velha à Europa eu servia a estratégia americana de um Bush, esquecendo o quanto a Europa tem para dar; um discurso perigoso, em suma.
Eu não tinha chamado velha à Europa, mas só por acaso. O problema da Europa não é ser velha, é estar velha e relha, e não é um problema alheio, é meu. Por isso é que quero falar na Europa do que é novo no Brasil: sou europeia. Se fosse brasileira falava para o Brasil, e do que no Brasil está velho e relho.
A seguir ao professor, um brasileiro levantou-se para dizer que os brasileiros só eram antropófagos por serem miseráveis, e que tudo era menos pujante do que parecia, por exemplo o mecenato cultural, que só prejudicara a cultura ao ir todo para actores da Globo.
Terá sido assim, mas não é mais, tentei explicar. E já atrasada, a sessão terminou para almoço.
Foi então que a oradora alemã me disse que eu tinha uma visão idílica do Brasil.

6. É difícil ter uma visão idílica do Brasil depois de viajar por estradas de terra até ao vale do Jequitinhonha, já considerado o lugar mais pobre do país. Ou depois de deambular pelos arredores industriais de São Paulo sob um céu de chumbo. Ou depois de apanhar um daqueles comboios que levam ao fundo do Rio de Janeiro.
O Brasil é o escândalo das 850 mortes numa noite de chuva e a humanidade de um país inteiro a ajudar. É uma identidade a caminho. É um grande caminho.

7.— Não disse que você tem uma visão idílica do Brasil, mas que deu uma visão idílica do Brasil — emenda a oradora alemã, quando tento debater o assunto num intervalo. Depois explica-me que tenho o mesmo problema dos estudos pós-coloniais: a minha visão idílica do Brasil tem a ver com a culpa do colonizador.
8. No fim do colóquio, quando vou a sair, aparece Luiz. E depois Franklin, James, Débora, Carlos, todos brasileiros. Vieram de Curitiba, de Manaus, de Serrania. Estão a fazer um mestrado em estudos teatrais no Porto. Querem dizer que não se revêem nas palavras do único brasileiro que falou, que só não lhe responderam porque a sessão acabara logo, que o que sentem no Brasil é pujança, sim.
9. Então como trazer essa pujança à Europa sem que a Europa ache que lhe estão a pisar o pé? Como fazer com que a Europa a veja além do lugar comum? É de noite e caminho pelo Porto ao lado da minha amiga Ana, que tem tantos anos de Portugal como de Brasil.
Ana diz duas coisas: lugar comum é o Brasil da miséria violenta, não é preciso vir à Europa dizer-lhe o que ela já sabe; e nem que seja por causa dos cinco brasileiros que naquela sala portuguesa ouviram outra visão do seu país, já valeu.

10. O paraíso não é um desfecho, não é nunca aqui. Do alto da Rocinha à praça Tahrir, os homens fazem-no e desfazem-no a cada dia. Tudo pode estar sempre a começar.

Não que o que nosso conterrâneo de São Paulo não estivesse certo em alguns aspéctos. Mas por que ? Em um colóquio aonde o Brasil, apesar de estar vivendo novamente as desgraças das enchentes, estava sendo enaltecido, e sendo visto como um países que esta se desenvolvendo de forma positiva, também na área da cultura, e que tem muito a mostrar para o resto do mundo, pois, apresenta uma forma única de movimentos artísticos, e tem uma cultura riquíssima, que serve de inspiração para qualquer país. O que a Alexandra estava tentando mostrar com seu discurso, era que a Europa poderia olhar para o Brasil como fonte de inspiração, em sua forma de fazer arte, e assim mover as bases dos estratégias culturais europeus, que encontram-se em baixa. 
Então vem um brasileiro e nega tudo o que a jornalista afirma, mostrando somente o lado negativo, e tudo aquilo que todos já sabem. Foi como uma enchente,todos estavam encantados com o texto da portuguesa, mas veio a enxurrada e levou tudo novamente. Quem sabe no ano que vem!

Um comentário:

  1. "(...) um brasileiro levantou-se para dizer que os brasileiros só eram antropófagos por serem miseráveis, e que tudo era menos pujante do que parecia, por exemplo o mecenato cultural, que só prejudicara a cultura ao ir todo para actores da Globo."

    Bem, bem... dizem que as opiniões tbém se formam através de nossa própria imagem... Esse tal compatrício deve ter visualizado seu reflexo...

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